O escapamento de cronômetro

Flávio Maia, Julho de 2007.

 

 

Antecedentes históricos

 

John Harrison comprovou, com a construção do "H4", que um relógio poderia ser usado como meio prático para determinação da longitude. Os relógios de Harrison, inclusive seu modelo de pêndulo com escapamento "gafanhoto", eram considerados os mais precisos do mundo.

 

Harrison, porém, era pragmático e autodidata: contornava os problemas de projeto de seus relógios com a adição de novos mecanismos em seu interior, não a subtração deles. Os relógios de Harrison, portanto, eram extremamente complexos e exigiam construção meticulosa, algo impensável numa produção em massa.

 

Larcum Kendall, conforme abordado no texto "Uma visita ao Observatório de Greenwich", foi contratado pela Comissão da Longitude para construir uma cópia do "H4".

 

Após realizar o trabalho, que demorou cerca de dois anos, os integrantes da Comissão indagaram a Kendall sobre a possibilidade de treinar outros relojoeiros para construir o relógio em massa. Kendall, para dissabor da Comissão, afirmou:

 

"Sou da opinião de que muitos anos se passarão (caso aconteça) até que um relógio do mesmo tipo daquele de autoria do sr. Harrison possa ser fabricado por 200 libras" (cerca de 120 mil dólares atuais).

 

Assim, apesar de o relógio de Harrison ter demonstrado que era possível determinar a Longitude com um método simples, seu uso não foi difundido: era muito mais barato e acessível utilizar equipamentos astronômicos, como o sextante e o método de distâncias lunares defendido por Maskelyne.

 

O desenvolvimento do cronômetro, porém, estava apenas começando. Em outros países, sobretudo na França, relojoeiros também buscavam solucionar o problema da longitude.

 

Quando o "H4" foi desmontado por Harrison na presença de outros relojoeiros, para que fosse analisado o funcionamento dos seus mecanismos, lá estava Thomas Mudge, outrora aprendiz de George Graham.

 

Nos dias atuais, o projeto do "H4" provavelmente seria considerado "segredo de Estado". Naquela época, porém, a descoberta da longitude não era apenas prioridade nacional, mas mundial. Talvez por isto tenha Thomas Mudge comentado com Ferdinand Berthoud, famoso relojoeiro francês, a respeito do método de compensação de temperatura utilizado no "H4", uma versão miniaturizada do pêndulo "gridiron" de Harrison.

 

A "grelha" compensadora rapidamente ganhou lugar nos primeiros cronômetros de Berthoud, provocando uma grande evolução nos projetos franceses (claramente visível na foto ao lado, construída em aço e latão).

 

Os relógios de Berthoud, no entanto, possuíam os mesmos problemas dos de Harrison: extrema complexidade e adição de mecanismos como forma de contornar problemas de projeto.

 

Um relojoeiro francês, porém, resolveu simplificar os projetos de cronômetro existentes. Seu nome era Pierre Le Roy.

 

 

 

 

 

O primeiro escapamento com órgão regulador separado

 

Berthoud empregava nos seus cronômetros o escapamento de cilindro, inventado por George Graham e usado pelos mais famosos relojoeiros do mundo desde o início do século dezoito.

 

Todos os escapamentos são compostos de duas partes: um balanço com uma mola, que controla o tempo de sua oscilação, e uma roda de escape, que fornece energia ao balanço a cada volta, para que o mesmo não pare de girar.

 

O escapamento de cilindro, assim como o escapamento de vareta, é conhecido como um modelo "de fricção". A explicação é simples: um escapamento é considerado "de fricção" quando o seu órgão regulador - o balanço - está em permanente contato com a roda de escape (ver foto. Ressalte-se que apenas o eixo do balanço, com o entalhe, está à mostra).

 

As deficiências dos escapamentos "de fricção" são claras. Como a roda de escape está em permanente contato com o balanço enquanto ele gira, seu movimento não é totalmente estável, em virtude do atrito entre as partes do sistema. Ademais, o escapamento necessita de lubrificação intensa entre o cilindro e a roda de escape. Com a deterioração do lubrificante, o desempenho do relógio tende a piorar cada vez mais.

 

Pierre Le Roy (e na mesma época Thomas Mudge) imaginou separar o órgão regulador (o balanço) da roda de escape. O balanço giraria a maior parte do tempo livre, sem qualquer atrito com a roda de escape, que apenas o impulsionaria em um diminuto espaço do arco de rotação.

 

Criou, então, o primeiro escapamento em que o órgão regulador (o balanço) girava livre dos distúrbios provocados pelo permanente contato com a roda de escape, como nos modelos com cilindro. O escapamento criado lembrava a forma de uma "âncora" e, aperfeiçoado por Thomas Mudge, tornou-se o padrão nos relógios de pulso e bolso, até os dias atuais (o escapamento de âncora é analisado em detalhe no texto "O escapamento de âncora", de Walt Odets).

 

Pierre Le Roy, então, projetou aquele que pode ser considerado o precursor do cronômetro moderno. Tinha como principais características a utilização de um escapamento cujo órgão regulador girava livre, ajuste de marcha através de pesos no balanço ("free sprung"), mola isócrona e facilidade de produção.

 

Submetido a semelhantes testes que o "H4" de Harrison, mas perante uma "Comissão da Longitude" francesa, o relógio possibilitou que Le Roy ganhasse o prêmio oferecido pela França.

 

Berthoud, no entanto, continuou a gozar de prestígio entres os franceses, sobretudo pelo livre acesso que tinha entre os grandes escalões do governo e auto-promoção. 

 

Os cronômetros franceses, assim, nunca foram produzidos em grande escala.

 

Uma revolução, porém, estava prestes a ocorrer.

 

O escapamento de cronômetro ou detenção por mola

 

No quarto final do século dezoito, despontou na Inglaterra um relojoeiro que impressionou o rei George III ao presenteá-lo com um relógio com repetição de minutos e que podia ser colocado em um anel. Seu nome era John Arnold.

 

Arnold poderia ter seguido sua vida apenas vendendo relógios para a realeza, o que seguramente lhe traria bons dividendos. Preferiu, no entanto, concentrar seus esforços no desenvolvimento dos cronômetros marítimos.

 

Seus primeiros cronômetros abandonaram definitivamente os modelos complicados de outrora e fixaram as características que permaneceriam até o advento do quartzo: escapamento de detenção, mola helicoidal isócrona e balanço bimetálico para compensação de temperatura.

 

Na mesma época que Arnold requereu a patente do seu escapamento de detenção, outro relojoeiro também o fez, chamado Thomas Earnshaw.

 

Earnshaw não tinha dinheiro para submeter seu projeto a uma patente. Realizou com Thomas Wright, então, um acordo comercial. A patente seria requerida em nome de Wright, que posteriormente receberia "royalties" pela venda dos futuros cronômetros de Earnshawn.

 

Arnold, no entanto, submeteu seu escapamento à patente primeiro do que Earnshaw. A patente, porém, não possuía o desenho da mola de detenção, considerada a essência do escapamento. 

 

Earnshawn soube por Wright, no entanto, que este havia mostrado um dos seus cronômetros já construídos a Arnold, antes de ele requerer a patente.

 

A partir deste momento, Arnold e Earnshaw passaram a ser não apenas competidores comerciais, mas inimigos declarados. Earnshaw passou a divulgar em toda a imprensa da época que Arnold havia "roubado" sua idéia e a submetido a patente antes.

 

Earnshaw passou a se comportar como Harrison perante a Comissão da Longitude, vitimizando-se e lançando "veneno" contra Arnold, mesmo após a sua morte.

 

Na época, a Comissão da Longitude resolveu colocar um ponto final na discussão e agraciou tanto o filho de Arnold quanto Earnshaw com 3000 libras cada, por serviços prestados em prol da arte da navegação.

 

Earnshaw não se acomodou e, até o fim da sua vida, continuou a acusar Arnold de ter copiado sua idéia.

 

O modelo de escapamento de detenção proposto por Earnshaw, de qualquer forma, foi o que prevaleceu até os dias de hoje. Arnold não utilizava a detenção por mola, mas por pivô, que caiu em desuso com o tempo, sobretudo por utilizar lubrificante na roda de escape, ao contrário do sistema de Earnshaw.

 

Como funciona o escapamento de detenção?

 

 

O escapamento de detenção constitui o ápice na precisão da relojoaria mecânica. Neste tipo de escapamento, o balanço gira a maior parte do tempo sem qualquer espécie de contato com a roda de escape. Isto só ocorre uma vez a cada oscilação completa do balanço (ao contrário de duas, como no escapamento de âncora), quando a roda de escape dá um impulso num platô existente no seu eixo. Este impulso, devido aos ângulos do sistema, é dado de forma absolutamente tangencial, sem atrito, tornando desnecessária a utilização de lubrificante. Imediatamente após este impulso, a roda de escape é retida (daí o nome do escapamento) por uma mola, permitindo que o balanço continue seu movimento sem qualquer interferência.

 

O funcionamento é o seguinte (ver foto, extraída do livro "Revolution in Time"):

 

A mola de detenção está indicada pela letra "b". Afixada na mesma mola existe outra, mostrada na letra "c", normalmente feita em ouro, por ser um material muito flexível. Observem que a mola "c" só se flexiona "para cima" (no desenho) e possui um pequeno prolongamento no final de sua extensão. 

 

O balanço, no desenho 1, está se movendo no sentido anti-horário (letra "g"). Enquanto o balanço gira, o rubi "h" encosta na protuberância da mola "c" (que só se flexiona para cima, pois está "comprimida" junto a outra mola, "b", que se flexiona "para baixo") e libera a roda de escape, que estava presa pelo rubi "e" existente na mola de detenção. A roda de escape, então, rapidamente se movimenta no sentido horário (figura 2) e impulsiona o balanço, através de um entalhe existente no seu platô (letra "i").

 

O balanço, então, gira uma volta completa sem receber nenhum tipo de impulso e sem contato com outras peças, a não ser a pequena ponta da mola "c", que se flexiona apenas o suficiente para permitir a passagem do rubi que fica no eixo do balanço (figura 3).

 

Uma excelente animação do escapamento pode ser encontrada no site http://www.clock-watch.de/, seção theory, escapements, detached, spring detent.

 

As vantagens do escapamento são muitas. O balanço oscila a maior parte do tempo sem qualquer atrito. O impulso, por sua vez, é dado de forma tangencial, como se fosse um "peteleco", o que dispensa o uso de lubrificantes. 

 

Um cronômetro marítimo equipado com escapamento de detenção facilmente atinge marcha diária em torno de um segundo de variação ou menos. A grande vantagem, porém, não é o valor absoluto da marcha, mas a sua constância: como o relógio não usa óleo no escapamento, a precisão é mantida por anos a fio.

 

Aliás, o projeto de Earnshaw era tão bom que ocasionou a falência de vários fabricantes de cronômetro no decorrer dos anos: o desgaste das peças não ocorria e a marcha era mantida regular por vários anos. Um cronômetro tornava-se investimento para toda uma vida e, quem já possuía um, não adquiria outro, pois não quebravam.

 

O escapamento de cronômetro, porém, foi muito pouco utilizado em relógios de bolso, em virtude da sensibilidade do mesmo. Como a roda de escape permanece "travada" apenas por uma pequena e flexível mola, qualquer movimento externo pode causar a liberação indesejada da rodagem. O escapamento permaneceu restrito, assim, aos cronômetros de bordo, seguros em caixas.

 

Um relojoeiro, no entanto, procurou unir as grandes vantagens do escapamento de cronômetro (impulso tangencial e desnecessidade de lubrificante) e o de âncora (retenção adequada e conseqüente resistência a choque).

 

Seu novo escapamento, inicialmente colocado em pouquíssimos relógios produzidos artesanalmente, galgou lugar em recente produção em massa numa conhecida fábrica suíça.

 

George Daniels e Omega são nomes familiares para vocês? Isto, porém, é uma outra história...

 

Bibliografia

 

- Longitude, A Verdadeira História de um Gênio Solitário que Resolveu o Maior Problema Científico do Século XVIII, por Dava Sobel;

- Timepieces, Masterpieces of Chronometry, por David Christianson;

- Watchmaking, por George Daniels;

- Collecting and Repairing Watches, por Max Cutmore;

- Revolution in Time, Clocks and the Making of the Modern World, por David S. Landes;

- Watch and Clock Encyclopedia, por Donald de Carle.

- Fotografia do movimento de relógio de Berthoud por "The British Museum"; escapamento de cilindro extraída do livro "Timepieces"; John Arnold e Thomas Earnshaw por "Wikipedia Online"; diagrama do escapamento de detenção extraído da obra "Revolution in Time".