Uma discussão sobre movimentos de relógios e sua originalidade, por Phil Baker

Texto originalmente publicado no site Timezone, seção TZ Classics, no ano de 2000. Tradução livre por Flávio Maia.

 

 

Introdução

 

 

Uma das considerações ao se comprar um novo relógio mecânico é o movimento (ou ébauche) usado no mesmo. Tem havido muita discussão e alguma confusão sobre movimentos de fontes externas, aparentemente similares, sendo usados numa variedade de marcas cujos preços variam de poucas centenas a milhares de dólares. E tem havido muita discussão sobre os méritos de comprar uma marca que fabrica seus próprios movimentos e outra, que os adquire de fontes externas. Muitas das companhias não facilitam isso para nós. Na leitura de sua literatura, não é sempre clara a origem do ébauche e as alterações porventura realizadas no movimento. Algumas marcas inclusive ocultam o fato de que usam movimentos comuns, alterando seu nome.

Conseqüentemente, é fácil pensar que todos os relógios usando um destes movimentos, como um ETA em particular, devam ser iguais. Isto é, na verdade, o que eu acreditava quando inicialmente tornei-me interessado em colecionar relógios, mas tendo aprendido que não é o caso. Era uma simplificação, como dizer que todos os computadores usando um chip Pentium sejam os mesmos. Este relatório é o resultado dos esforços para aprender mais sobre o assunto.

Devo deixar claro que não sou especialista em movimentos de relógios nem nos seus projetos. Sou engenheiro, com mais de trinta anos no desenvolvimento de dúzias de produtos, a maioria com alto conteúdo de engenharia mecânica. Isto me possibilitou uma avaliação de complexos projetos mecânicos, filosofia de projeto mecânico, materiais, métodos de montagem, custos, tempo para comercializar, valor, e, alguns dos assuntos relacionados a negócios.

Na elaboração deste artigo, contatei diversas manufaturas para requerer mais informação sobre o uso dos movimentos de fontes externas. Muitas foram relutantes em providenciar qualquer informação específica, indicando-me os seus catálogos. A única resposta séria que recebi foi de Rolf Schnyder, presidente da Ulysse Nardin, que cordialmente respondeu todas as minhas perguntas, fornecendo valiosa informação. Até emprestou-me amostras de movimentos, que foram examinadas por um relojoeiro de alto gabarito, Asim Gunalp, de San Diego, e eu.

 

Movimentos de fabricação própria e de fontes externas

 

Por que uma companhia usaria um projeto singular? Demoram-se anos para fabricar e testar totalmente um novo calibre, consumindo-se os automáticos, muito mais tempo do que os calibres de corda manual. O investimento é muito alto. Para uma companhia vendendo poucos milhares de relógios ao ano, faria pouco sentido criar um movimento inteiramente novo. Mesmo a Rolex, que pode diluir os custos de um novo movimento sobre centenas de milhares de relógios todo ano, continua a utilizar movimentos antigos e raramente desenvolve um novo. A companhia pode escolher utilizar seus recursos de projeto para desenvolver novas complicações, ao invés de projetar movimentos totalmente novos. Tendo trabalhado com engenheiros projetistas altamente criativos, eles freqüentemente estão mais interessados em executar um novo projeto do que realizar o que já foi feito, mas apenas de um modo diferente.

Também, nem todo movimento básico existente é adequado para acomodar complicações adicionais e impulsionar as funções extras. Apenas os melhores e maiores movimentos podem impulsionar os mecanismos adicionais, e estes não são normalmente os movimentos mais estreitos. Utilizando movimentos de fora, a companhia tem a opção de escolha de ébauches, baseado nas complicações que ela está acrescentando.

Um número de companhias, como a Patek, Lange, Rolex, Minerva, JLC, Zenith e outras, desenvolveram seus próprios movimentos e continuam a usá-los em novos modelos. No entanto, muitas não mais têm acesso a estes movimentos e precisam desenvolver um novo a partir do zero ou adquirir o movimento ou seus componentes de uma das companhias que vendem movimentos para outras. Estas incluem a ETA, Lemania, Frederic Piguet e algumas outras. Devido ao alto custo de projeto, ferramental e construção do equipamento de fabricação, projetar um novo movimento a partir do zero pode não ser sempre viável, particularmente para uma companhia que fabrica apenas uns poucos milhares de relógios a cada ano. Com a enorme quantidade de testes sob o qual o movimento deve passar, também poderia haver atrasos em lançar o relógio no mercado. Isto também atrasaria o lançamento de complicações.

 

Existe movimento de fonte externa e "movimento de fonte externa"

 

Quando alguém consulta as especificações de um relógio utilizando um movimento de fonte externa, não é sempre clara a sua qualidade, ou que torna difícil saber exatamente o que estamos comprando. Abaixo à esquerda está uma imagem mostrando um 2892-A2, como a ETA o envia a uma companhia pretendendo usá-lo intacto e, ao lado dele, à direita, o movimento do Ulysse Nardin Astrolabium, que possui um rotor super detalhado e bem acabado, e a platina superior cinza, que impulsiona o disco do mostrador. O Astrolabium possui apenas algumas partes do ETA 2892-A2, somente para seu mecanismo de corda. Um ETA 2892-A2 consiste de 81 peças antes da montagem. A Ulysse Nardin aludiu que eles precisam de um movimento forte, um verdadeiro "trator", para manter todas as utilidades do Astrolabium funcionando, o que resultou na seleção destas já testadas peças. Para completar o movimento do Astrolabium, a Ulysse Nardin adicionou nada menos que 110 peças de seu exclusivo projeto.

 

 

 

 

A Ulysse Nardin não compra o ETA 2892-A2 intacto, mas apenas algumas de suas partes, muitas das quais são refinadas e combinadas com outras partes feitas a partir do zero ou adquiridas de outras fontes.

O rotor "esqueleto" de ouro maciço do Astrolabium é um bom exemplo. É um rotor bem esculpido feito a partir do zero para substituir a massa oscilante de metal original da ETA. Sendo "esqueleto", ele possui ouro extra adicionado no perímetro interior, invisível pela traseira do relógio.

Ulysse Nardin, Franck Muller, IWC, Daniel Roth e outras companhias de prestígio, não tendo acesso ao seus próprios ébauches, e, ainda, querendo desenvolver produtos exclusivos com suas próprias complicações, seguem esta abordagem e adquirem movimentos ou partes externamente. Apenas um número limitado de fabricantes de movimentos os disponibilizam para outras companhias (A ETA é a maior, com a mais ampla seleção de modelos). Usando movimentos e componentes de fora, a companhia pode escolher as partes que melhor se adequam aos seus interesses.

Diferentes movimentos  que são projetos próprios são freqüentemente protegidos por patentes, o que permite à companhia possuir modelos com funções exclusivas, que não estão disponíveis para venda a outras companhias. Poucos novos movimentos são criados atualmente, e não há garantia de que eles serão mais confiáveis daquilo que está disponível a preço similar. A Lange criou alguns dos novos movimentos que foram muito aclamados, mas a um custo extremamente alto. Estoque de movimentos antigos são difíceis de se encontrar hoje. Quando estão disponíveis, são em número bastante limitado.

 

Ampla seleção de movimentos de fontes externas

 

Deve-se também asseverar que a ETA e outros fabricam muitos tipos de calibres, com diferentes características, diferentes níveis de precisão e mão-de-obra, diferentes tamanhos, espessuras e possibilidades. O modelo ETA usado no movimento de um Swatch, por exemplo, custa uma fração do Cal. ETA 2892-A2. Para muitos fabricantes, o ETA 2892 é considerado um dos melhores no propósito de se adicionar novas complicações, e possui mais de 20 anos de história por trás. O movimento ETA 2892 padrão, por acaso, possui ponteiro central e não tem "reserva de marcha".

Vocês podem ver uma seleção de quase uma dúzia de movimentos ETA no Watches, Volume 4 ou Wristwatches 2000. A ETA os vende como movimentos completos equipados com a roda de balanço ajustada; não ajustada ou em kits de peças mecânicas desmontadas.

Algumas fábricas de relógios freqüentemente compram suas próprias molas principais, espirais e rodas do balanço. Estas também aparecem em diferentes níveis de qualidade e preço. Quanto melhor a qualidade da mola e do balanço, com maior exatidão pode o fabricante regular e manter a precisão do movimento. Todas as fábricas suíças e alemãs adquirem espirais da Nivarox e balanços da FAR (Fabrique d' Assortiments Réunies). Um pequeno número é capaz de fabricar alguns dos seus escapamentos.

A fábrica pode então escolher decorar e aperfeiçoar o movimento de vários modos, incluindo folheados a ouro ou ródio, polimento, facetamento e/ou lapidação das platinas e pontes. Isto é basicamente trabalho cosmético, mas é bem visível abrindo-se o relógio ou observando o movimento através de uma tampa traseira transparente. As melhores companhias fazem o acabamento, montagem e regulagem de seus próprios movimentos, seja baseado nos seus próprios modelos ou em partes adquiridas de outros.

Uma classe totalmente diferente de relógios utiliza movimentos sem modificações, totalmente pré-montados e de fontes externas. A crítica a estas marcas não é normalmente baseada na performance, mas na baixa relação custo-benefício. Estas companhias não adicionam valor ao movimento e, freqüentemente, mascaram este fato dando ao ébauche uma designação especial. Ainda assim estas companhias cobram preços na faixa de milhares de dólares. Abaixo, por exemplo, é um relógio com alguns anos de uso, que possuía um preço sugerido de 3500 dólares, e usa um ETA 7750 padrão.

 

Breitling Chronomat 1997

 

 

Mais alguns exemplos

 

Eu tive a oportunidade de visitar a fábrica da Minerva no ano passado e vi em primeira mão como eles produzem relógios usando movimentos que estão em produção há mais de 30 anos. Esta companhia certamente não poderia se dar ao luxo de desenvolver novos movimentos nos dias de hoje. Para o modelo Palladio DT, eles utilizam o ETA 7750 padrão e adicionam uma exclusiva função de segunda zona horária. Este é um exemplo de uma boa e pequena companhia, utilizando-se de um bom movimento, mas adicionando sua complicação de desenvolvimento próprio, para criar um movimento exclusivo.

Também visitei a IWC e vi como eles fabricam seus relógios utilizando partes compradas da ETA. Por exemplo, o UTC e o Mark XV são baseados no ébauche ETA 2892-A2, que passa por uma completa re-manufatura. No caso do primeiro, adicionam uma complicação totalmente nova, com um exclusivo modo de mostrar a segunda zona horária. Você podem ver este complexo mecanismo desenvolvido indo ao site da IWC.

A Ulysse Nardin segue proposta similar no seu Big Date GMT, comprando partes da ETA, aperfeiçoando muitas destas partes e desenvolvendo suas próprias pontes. Eles então adicionam suas próprias complicações, que são o patenteado mecanismo de data grande e o exclusivo mecanismo de avanço do ponteiro de horas. Abaixo é uma imagem mostrando o movimento do Ulysse Nardin Big Date GMT.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Apesar do GMT Big Date utilizar o ETA 2892-A2, a Ulysse Nardin adiciona 72 partes exclusivamente projetadas. Do mesmo modo, seu popular modelo Marine Chronometer 1846 utiliza o 2892, e tem 51 partes exclusivas acrescentadas. Projetadas por Ludwig Oechslin, o novo movimento adiciona um pequeno segundeiro às 6 horas e reserva de marcha, para criar um design exclusivo.

O movimento utilizado no Ulysse Nardin Perpetual Ludwig é mostrado abaixo. Vocês podem reconhecer o movimento pelos vários discos no topo do movimento e o altamente refinado rotor de ouro branco com o logotipo da Ulysse Nardin, esmaltado à mão na parte traseira.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

No caso do Ulysse Nardin Ludwig Perpetual, apenas o conjunto de engrenagens foi usado intacto, comprado da Lemania. Todas as outras partes foram feitas a partir do zero ou modificadas. Este movimento não usa nenhuma parte ETA. A platina principal foi totalmente desenvolvida pela Ulysse Nardin e não pode ser usada no calibre Lemania.

Estas funções adicionais ou transformações requerem espaço para acondicionar todas as partes extras. Um 2892 normal possui a altura de 3,60 mm; o movimento do GMT Big Date, 5,35mm e o Marine Chronometer 1846, 5,10mm.

Em todos estes movimentos com complicações, as partes extras são adicionadas na parte superior do movimento, embaixo do mostrador (onde as funções extras são observadas). Elas não são visíveis olhando-se a parte de baixo do movimento (do lado do rotor). Conseqüentemente, estes modelos podem parecer similares quando observados atentamente pela janela traseira de safira, mas são substancialmente diferentes quando examinados pelo topo ou lateral.

Melhorar a estética de um movimento pode custar muitas vezes o preço do movimento básico ou ébauche. Rotores de ouro e platina feitos sob medida em pequenas quantidades podem custar centenas de dólares cada um. Decoração feita à mão, lapidação e folheamento a ródio e ouro também adicionam custo. Além da estética, acabamento à mão, montagem, regulagem e testes também acrescentam substancial valor ao movimento.

 

Resumo

 

Existe uma gama de movimentos de variada qualidade e complexidade, incluindo

A) Movimentos padrão comprados de uma fábrica e usados como eles são, sem complicações;

B) Movimentos desenvolvidos completamente pelos fabricantes, algumas vezes com complicações adicionais, que também são freqüentemente desenvolvidas internamente;

C) Movimentos com algumas partes de um movimento de fontes externas, combinados com partes desenvolvidas internamente, freqüentemente utilizadas para criar novas complicações.

Minha escolha pessoal ao colecionar relógios é focar no B e C, que fornecem exemplos de criatividade, originalidade e realização de novos projetos exclusivos. Estas complicações, combinadas com caixas e mostradores de alta qualidade, são o que fazem tais objetos tão interessantes para mim. É uma das poucas áreas de produção que combinam a excelência na arte e engenharia, com uma longa história de evolução de produto em algo que é tão pessoal. Uma companhia usando algumas partes de fontes externas para criar um mecanismo individual e exclusivo ainda requer obstinada capacidade de projeto e inovação.

 

Gostaria de agradecer a Phil Baker por permitir a tradução e divulgação deste artigo.

Fotografia do movimento ETA 2892-A2 por Otto Frei; movimento do Breitling Chronomat 1997 por Ze White Rabbit; todas as demais por Ulysse Nardin.

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