O NOVO PARADIGMA: o relógio a quartzo

Texto por Flávio Maia

 

Paradigma é um conjunto de conceitos bem estabelecidos, constituindo um modelo ou padrão.

Por centenas de anos, a Suíça foi o maior fabricante de relógios do mundo em volume de vendas. A mudança de paradigma ocorrida por volta de 1970, através da concepção de um relógio dissociado dos padrões seculares de produção, causou uma revolução em toda a indústria relojoeira. A partir desse momento, os suíços nunca mais recuperaram a hegemonia do mercado.

 

Antecedentes históricos

 

Os suíços passaram a dominar o mercado relojoeiro mundial a partir do século XVIII, quando técnicas de produção em massa foram introduzidas. Os ingleses, outrora líderes na fabricação de relógios, não podiam competir com os suíços, já que sua manufatura era baseada em pequenas oficinas, com produção artesanal e de alto custo.

A superioridade suíça, porém, incentivou outro país a investir no lucrativo mercado dos relógios.

 

A iniciativa americana

Em 1867, o suíço G. F. Roskopf projetou e produziu um relógio equipado com um modelo simples de escapamento. Na âncora, eram utilizados pinos metálicos como alavancas, ao invés dos tradicionais rubis. Os relógios "Roskopf" eram muito baratos, pois possuíam apenas um conjunto de três engrenagens e caixa em aço de baixa qualidade.

A partir do projeto de Roskopf, diversas empresas americanas começaram a fabricar milhões de relógios a um preço bastante acessível. Em 1896, um relógio da marca Ingersoll, equipado com escapamento "Roskopf", custava apenas um dólar. Tais relógios tornaram-se conhecidos como "relógios de um dólar" ou "relógios do proletariado". A precisão de tais relógios, é óbvio, não se comparava àqueles equipados com rubis.

Mas, a partir de então, o relógio tornou-se um produto disponível a todas as camadas da população.

Após a Segunda Grande Guerra, a United States Time Corporation, beneficiando-se do conhecimento adquirido na produção de armas durante a economia de guerra, lançou um novo produto: o "Timex". O modelo também utilizava o simples escapamento "Roskopf", mas era fabricado em metal de artilharia, o que lhe confiava extrema durabilidade. O sucesso do relógio foi tão grande que, dez anos após o seu lançamento, já detinha mais de 80% do mercado americano.

O "Timex" não teria sido possível sem o desenvolvimento de técnicas de automação e padronização. Os relógios Timex efetivamente possuíam uma boa relação custo-benefício e razoável precisão. Por que os consumidores deveriam pagar tão caro por um relógio, se um Timex funcionava tão bem?

Os suíços, é claro, não apreciaram tais inovações.

 

O primeiro relógio a quartzo

 

Em 1880, Pierre Curie, trabalhando com seu irmão Jacques, descobriu que cristais de quartzo vibravam a altas freqüências quando submetidos a uma corrente elétrica. Tal freqüência, por sua vez, não parecia sofrer alterações em virtude de influência externas, como temperatura e pressão.

Warren Marrison, fundamentando-se nos conceitos já estabelecidos por Pierre Curie, criou, em 1927, um relógio baseado nas regulares vibrações do quartzo num circuito elétrico.

O relógio, porém, era equipado com válvulas e ocupava o volume de um pequeno cômodo. Com a tecnologia disponível na época, era impossível a miniaturização dos componentes.

Esse problema seria resolvido em breve: Jack St. Clair Kilby, da Texas Instruments, e, Robert Noyce, da Fairchild Industries, desenvolveram o circuito integrado; uma equipe da Hamilton, por sua vez, criou uma bateria em miniatura para equipar seus modelos "Ventura".

Estavam lançadas as bases para criação do relógio de pulso a quartzo.

 

O modelo de transição

 

O suíço Max Hetzel, em meados de 1950, inventou e ofereceu a todas as fábricas suíças um novo modelo de relógio, baseado num sistema eletro-mecânico. Os suíços não se interessaram...

A americana Bulova, porém, acreditou no potencial do produto, comercializando-o a partir de 1960 sob o nome de "Accutron".

Posteriormente, diversas fábricas suíças passaram a utilizar o movimento "Accutron" em seus relógios, pagando licenças substanciais a Bulova!

 

Nasce o relógio de pulso a quartzo

 

Os suíços, cientes dos novos rumos tomados pela tecnologia de medição do tempo, fundaram, em 1962, o "Centre Eletronique Horloger" (CEH), para desenvolver um relógio de pulso a quartzo.

O resultado das pesquisas de tal laboratório foi o protótipo de módulo de relógio de pulso a quartzo denominado "Beta 21", submetido à competição anual de precisão do Observatório de Neuchâtel, em 1967.

O protótipo mostrou-se muito superior aos melhores relógios mecânicos, tornando sem sentido as competições anuais de precisão. Assim, em 26 de abril de 1968, o Conselho de Estado Suíço decretou, para sempre, o fim das disputas.

As grandes fábricas suíças, não obstante o excelente desempenho do modelo a quartzo, não se interessaram em desenvolver a nova tecnologia. A posição suíça era bastante confortável pra assumir riscos, pois, em 1970, 98% dos relógios ainda eram equipados com movimentos mecânicos.

 

 

 

 

Novos rumos

 

Americanos e japoneses, porém, possuíam a tecnologia eletrônica a disposição e acreditavam no sucesso do novo produto criado pelos suíços.

Desenvolveram inúmeros modelos que, inicialmente, mostraram-se pouco duráveis, volumosos e caros. Quem não se lembra daqueles estranhos relógios equipados com "LEDs" que custavam o preço de um bom carro em 1970?

Mas, alguns anos mais tarde, os relógios de pulso a quartzo custavam menos de dez dólares, alcançando absoluto sucesso de vendas.

A indústria suíça, despreparada para a súbita mudança de paradigma, mergulhou numa grande crise, levando centenas de fábricas à falência e inúmeras pessoas ao desemprego.

 

A recuperação suíça

 

No início de 1980, a situação da manufatura relojoeira suíça era extremamente crítica, o que ocasionou a fusão de diversas empresas que, de outro modo, não sobreviveriam.

Nicolas G. Hayek, presidente da Hayek Engineering, foi contratado para tentar reverter a situação do grande conglomerado suíço ASUAG-SSIH ( hoje Swatch Group ), a partir da elaboração de estratégias de desenvolvimento e marketing. Jacques Müller, engenheiro da ETA, empresa do grupo de Hayek, inventou um relógio com apenas 51 peças, caixa de plástico e produzido inteiramente de forma automatizada. O produto, lançado em 1983, foi chamado "Swatch", e, logo despertou o interesse dos consumidores, sobretudo pela grande variedade de modelos.

As tradicionais fábricas suíças de relógios de luxo, por sua vez, perceberam que preços altos poderiam estimular a demanda, porque demonstrariam status. Assim, direcionaram suas campanhas publicitárias, transformando os relógios mecânicos em verdadeiras jóias.

Hoje, apesar das indústrias suíças responderem por uma pequena parcela do mercado mundial em número de relógios vendidos, conseguiram retomar o primeiro lugar relativamente ao volume financeiro de negociações.

Relógios mecânicos suíços, porém, outrora objetos acessíveis a todos, tornaram-se um privilégio para poucos.

De qualquer forma, nunca se viu uma evolução tão rápida da relojoaria mecânica com nos últimos dez anos. Relógios mecânicos produzidos em série com novos modelos de escapamento e turbilhões são a prova viva de que a relojoaria mecânica renasceu e ainda se desenvolverá nos próximos anos.

 

Bibliografia

Revolution in Time: Clocks and the Making of the Modern World, David S. Landes, 1998, Barnes & Noble Books

Collecting and Repairing Watches, Max Cutmore, 1999, David & Charles Book

Horological Times, A Brief History of the Quartz Watch, 1998, American Watchmakers Institute

 

Créditos

Foto do CEH Beta 21 por CSEM ( Swiss Center for Eletronics and Microtechnology )

Foto de Pierre Curie por The Nobel Foundation

Todas as demais gentilmente cedidas por Norma Buchanan, editora-chefe da revista American Time